Cinco Segundos - Capítulo IV: Ariel Montezuma não é Mara Simpson
O cheiro doce impregnava o ar e parecia agarrar-se à pele. A Grande Pocilga Verde que era o sistema de renovação da atmosfera da zona de Bluebank estava mesmo à sua frente, uma grande piscina cheia de bactérias modificadas que produziam incessantemente oxigénio e devoravam nos seus processos uma miríade de venenos do ar. A contrapartida era ter de suportar aquele cheiro enjoativo vários quilómetros em redor do sistema.
A casa de Mara era num dos blocos degradados que rodeavam a instalação, um apartamento num décimo andar certamente sujo e velho, com as paredes descascadas de tinta a gritar por um auxílio que nunca chegaria, canalizações rotas rugindo nos piores momentos e vizinhos tão indesejáveis quanto se possa imaginar. Insectos e ratos é que nem ali existiam, se bem que não fossem dos animais que tivessem deixado mais saudades. A capacidade de adaptação a condições adversas também tem limites...
Na zona da GPV também se acumulavam as fábricas, e os receptores de energia da cintura de satélites alimentadores não se conseguiam contar pelos dedos das duas mãos. A intervalos curtos ouvia-se o crepitar característico que acompanhava as descargas laser de alta potência provenientes dos satélites, o último dos benefícios que o sol entregava à Terra. Quando a energia dos reactores de fusão se tornou insuficiente, o último recurso foi uma cintura de satélites sofisticados que recebiam a energia do sol, a armazenavam e depois transmitiam para os receptores à superfície em curtos impulsos de vários TeraJoule.
Quando ocorrera a última avaria no sistema de coordenação, um feixe de descarga varrera do céu um Megaplane com duas mil pessoas a bordo e a explosão tinha arrasado vários bairros com o seu sopro de energia pura. Nunca se soube quantos morreram mas também, fora os parentes, ninguém se tinha interessado muito em saber.
- O elevador não me parece muito seguro.
- Se eles arriscam, porque não nós? – Rickert entrou no elevador sem luz seguido pelo Massa Lenta. Rugidos de leões de aço acompanharam-nos em toda a ascensão até ao 10º andar. A porta abriu-se alguns centímetros e depois parou. Rickert deu um pontapé na da esquerda e depois empurrou a da direita.
- É o 35?
- Trinta e cinco. – confirmou Rickert.
Ouvia-se música através da porta fechada. Junkmusic do sul, pareceu-lhe. O Massa Lenta tocou à campainha.
- Sim? – tinha os olhos azuis e a música que se ouvia era mesmo Junkmusic do sul.
- Mara Simpson? – ela disse que sim – Podemos entrar? Somos amigos da Kim e gostávamos de lhe fazer algumas perguntas.
Ela tentou fechar a porta mas o pontapé de Rickert abriu-a completamente e atirou com ela pelo chão.
- Mara, a sua atitude não é nada hospitaleira. Só queremos fazer-lhe algumas perguntas.
- E queremos as respostas – acrescentou o Massa Lenta enquanto admirava os bibelots que ornamentavam um pequeno móvel de bambu. Mara afastara-se assustada até ao outro lado da pequena sala.
- Não queremos fazer-lhe mal, só queremos que nos diga o que viu no beco junto ao bordel na quinta feira passada.
- Não vi nada.
- Largaram um homem inconsciente no beco, nessa noite; só queremos que nos descreva as pessoas que o levavam. Não lhe queremos fazer mal mas, se for necessário...
Mara olhou para Rickert e depois para o Massa Lenta. Baixou a cabeça e começou a falar num tom inexpressivo, debitando as palavras como se duma máquina se tratasse.
- Eram três e vieram num jetcar. Foi isso que me atraiu a atenção, não se vêem muitos jetcars naquela zona do Sinheaven. Mas você está enganado – apontou para Rickert – ele não vinha inconsciente, vinham os três bem vivos e despertos. O tipo só desmaiou quando um deles lhe apontou uma arma: houve um clarão e ele caiu, depois arrastaram-no para cima de um monte de sucata e foram-se embora.
- Como eram eles?
- Como é que você queria que eu visse? A única coisa que notei foi o logo no jetcar deles: era o da Aumann-Yoko.
- O da corporação?
- Conhece outra Aumann-Yoko? – ela estava a perder o medo.
- Não viste mais nada, Mara? – ela abanou a cabeça.
- Agora deixem-me em paz.
Rickert voltou-lhe as costas e saiu.
- Um deles era ruivo e o outro era grande e gordo. O que eles abandonaram até era parecido consigo.
- Adeus Mara, obrigado por tudo.
- E então? – perguntou-lhe o Massa Lenta já no elevador – Achas que a partir disto podemos chegar a algum lugar?
Rickert tinha o olhar fixo em alguma coisa para lá do estreito horizonte da cabina acanhada.
- Quem é que conheces na Aumann-Yoko?
- Se me apanham aqui perco o emprego!
- Cala-te Parsons! Continua a procurar.
- Estes ficheiros são confidenciais, Massa Lenta! Tão confidenciais que nem estão informatizados.
- Não lhes convém, afinal todos esses processos são de gente que lhes faz os trabalhinhos sujos.
- Nesta zona. – acrescentou Parsons – Apenas nesta região. A Aumann-Yoko é uma companhia importante em todo o mundo, muito ligada às administrações.
- A Aumann-Yoko é a Administração! – afirmou Rickert.
Parsons não disse mais nada, continuou a remexer as pastas de cartão que enchiam as gavetas dos arquivos.
- Como era mesmo o nome que vos disse?
- Ariel Montezuma. Grande e gordo. Hoje estás com a memória em mau estado, Parsons. Vê lá se não ficas com outras coisas em mau estado...
- Estou a fazer o melhor que posso, Massa Lenta. Hei-de encontrar o processo desse tipo, ele tem de estar aqui. Afinal, ele ainda nos fez um trabalhinho na passada quinta-feira. – a gargalhada que Parsons esboçou morreu-lhe na garganta quando a mão de Rickert lhe filou o pescoço.
- Deixa-o, Rickert! Ele não vale isso e precisamos dele. – Parsons começava a adquirir um tom azulado.
Quando largou o pescoço de Parsons este caiu pesadamente na cadeira, lutando por respirar.
- Só estava a brincar! – justificou-se Parsons depois de recuperar o fôlego.
- Não brinques outra vez, podes magoar-te a sério.
- Que falta de senso de humor. – resmungou.
- Já o perdi há muito tempo.
Seguiram-se vários minutos de silêncio só quebrado pelo restolhar das folhas de papel.
- Encontrei-o! – exclamou Parsons – Copiem o que precisam, é muito perigoso tirar cópias.
- O teu amigo não vai dar com a língua nos dentes?
- Não, é de confiança. Isso além de eu saber muitas coisas que o colocariam numa situação muito delicada.
- Chantagem, em suma.
- Da mais genuína.
O apartamento de Montezuma ficava situado numa zona de classe média, um apartamento acima do que um ordenado vulgar de distribuidor de software da Aumann-Yoko podia sustentar.
Ninguém respondeu quando tocaram pela segunda vez à campainha. O Massa Lenta tirou o seu jogo de gazuas electrónicas de um bolso e começou a trabalhar na fechadura.
- Tenta com uma Pierson-Clark. – disse Rickert.
O projéctil esférico de uma Jeggler fez um buraco do tamanho de um punho na porta do apartamento, passando entre os corpos de Rickert e do Massa Lenta.
- Merda! – atiraram-se para o chão e saíram do ângulo em que podiam ser atingidos.
- Devias ter ficado quieto, Rickert! Agora vou ter de te matar mais ao rato que trazes contigo!
- De total confiança, não era, Massa Lenta?
- Ele não perde pela demora.
- Devias ter-me deixado matar o Parsons, agora é tarde. - disse Rickert enquanto destravava a arma, porque Ariel Montezuma não era propriamente Mara Simpson.
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